NO MATO SEM CACHORRO E SEM EDUCAÇÃO
Nas últimas décadas, a ideia de “educação”, de investimento
nessa dita cuja, passou a ser algo dito, ouvido e repetido como se fosse,
praticamente, uma espécie de mantra salvacionista que iria, com sua luz opaca,
libertar toda a humanidade das trevas que vicejam o coração humano; como se o
culto desta tivesse um papel similar ao de uma religião na sociedade atual,
como bem nos é lembrado por Ivan Illich.
Sim, já escrevinhei muitas linhas turvas e muitas páginas mal
escritas e borradas em vários momentos, nas últimas duas décadas, sobre esse
tema infeliz, a respeito deste problema insolúvel.
Essa montoeira de palavras - penso eu - foi tão mal compreendida
quanto foram mal rabiscadas e, talvez, por isso mesmo, insisto em continuar
parlando sobre esse tema para, quem sabe, torna-lo mais claro para mim e para
aqueles que - gentilmente ou não - deitarem suas vistas sobre as linhas que
agora semeio e, deste modo, quem sabe, possamos ter uma visão mais clara do
tamanho da encrenca em que nos enfiamos.
Para tanto, me permitam fazer uma perguntinha; digo,
permitam-me propor um cenário imaginário.
Suponhamos que nós sejamos médicos e que os pacientes
atendidos por nós demorem mais do que o esperado para receber alta. O que,
aliás, acontece muito frequentemente. Porém, todavia e, entretanto, suponhamos
que o exercício da medicina seja, de repente, reorganizado por pessoas que veem
na retenção de pacientes em seus leitos um ato injusto; um processo de exclusão
social e, por isso, para corrigir esses abusos históricos e nada inclusivos, esses
mesmos burocratas resolveram que todos os médicos deveriam passar a dar alta
para todos os pacientes que, como direi, “tentaram” ficar sãos, mesmo que não
tenham restabelecido minimamente a sua saúde.
Ah! E é claro que tudo isso seria feito em nome da inclusão,
da justiça social e da maldita consciência criticamente crítica e “responsável”.
E não apenas isso! Imaginemos, também, que neste cenário,
burocratas, autores da reorganização deste hipotético sistema de saúde, movidos
pelo mesmo pendor, resolvessem estabelecer contas mínimas para manutenção das
internações. Suponhamos que apenas um número ínfimo de doentes pudesse
permanecer internado até, realmente, recuperar [hipotética e] minimamente a sua
saúde. Imaginaram caríssimos? Pois é. Que coisa hein.
Então coloque mais um elemento nesse cenário: conjecturemos
que os pacientes não se sintam obrigados a seguir as prescrições e
recomendações médicas para ficarem curados.
E tem outra: se o abençoado não melhorar e, por ventura,
vier a óbito, a responsabilidade recairá, total e invariavelmente, sobre os ombros
dos homens de jaleco branco, mesmo que o enfermo nunca tenha seguindo
minimamente as suas recomendações.
Pior! Imaginemos que, ao final, venha uma comissão de
esclarecidos e iluminados burocratas, que nunca colocaram os pés num
consultório, num posto de saúde ou num centro cirúrgico, para questionar o
médico com perguntas como: o que você fez para que o seu paciente se
interessasse pelo seu tratamento? Quais metodologias ativas e diferenciadas
você adotou para chamar a atenção do doente? Quais?
Que barbaridade! Bem, se os atendimentos médicos fossem
guiados deste modo, o que aconteceria com a medicina? Pois é. Foi o que eu
pensei.
Ela não mais seria a arte da cura. Seria outra coisa. Seria
o contrário da medicina.
Bem, tal cenário, hipotético e hiperbólico simulado nas
linhas acima, na verdade, é o palco em que há décadas o sistema educacional
encontra-se agrilhoado. Essa é a triste realidade da educação brasileira, digo,
do sistema de deseducação de nosso país.
Uso a medicina como analogia porque, durante essas últimas décadas,
ouvi da boca de inúmeros burocratas, li em escritos de incontáveis doutos, que
se professor bom fosse aquele que reprova o aluno, bom médico seria aquele que
mata o paciente.
Sempre achei essa analogia duma infelicidade sem par. Mal
elaborada, maliciosa e canalha, porque, com aquele ar putrefaz de bom moço, tais
palavras acabam refletindo uma visão distorcida que subverte, perverte e, consequentemente,
destrói, descaracteriza o papel precípuo do professor no teatro da vida.
Por isso, penso eu, seria melhor dizer que o bom professor é
aquele que aprova o aluno quando ele realmente atingiu determinados
pré-requisitos mínimos, da mesma forma que o bom médico é aquele que apenas dá
alta para o paciente quando ele está com a sua saúde reestabelecida.
Se um médico fosse desautorizado a fazer o que é necessário
para curar um paciente, da mesma forma que um professor é sutil e veladamente
desautorizado a ensinar e a educar (na verdade, a desautorização não é tão
velada assim e, muitas vezes, nem um pouco sutil), nós teríamos uma multidão de
enfermos andando pelas ruas crentes de que estaria sãos de lombo, da mesma
forma que hoje temos diplomados aos borbotões, nos quatro cantos do Brasil,
portando todas as limitações advindas dum sistema educacional pervertido por
concepções educacionais equivocadas e por políticas e ações de burocratas que
não sabem nem quando é dia nesta arena dos jalecos e das lousas.
Poderíamos fazer analogias com inúmeras outras atividades,
mas aí, meu caro Watson, a escrevinhada ficaria demasiadamente longa. Mas uma
coisa a certa: se todas as outras profissões fossem regidas por princípios cínicos
e maliciosos, como há décadas vem ocorrendo com a educação, estas também
estariam naufragando.
Abre parêntese: Aliás, algumas, de fato, estão; mas esses
seriam panos para as mangas doutras camisas. Fecha parêntese.
É óbvio que esse não é o único problema presente e gritante
na seara da educação. Mas a corrosão que foi sendo feita, lentamente, da
autoridade professoral é um dos maiores e que, hoje, atinge o seu ápice.
Corrosão essa que foi feita, e continua sendo realizada, com
as bênçãos do patrono da educação brasileira, de seus discípulos e demais seguidos
e simpatizantes.
Enfim, a meu ver esse é o ponto em que a porca torce o rabo
e, por essa razão, creio firmemente que enquanto isso não for revisto com a
devida e indispensável serenidade, continuaremos no mato sem cachorro e com um
simulacro educação, atestado por um papel pintado, e de valor duvidoso, nas
mãos.
Escrevinhado em 07 de
outubro de 2019,
por Dartagnan da Silva
Zanela,
diretamente do Fundo da
Grota – http://zanela.blogspot.com
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