ALÉM DAS CERCANIAS UMBILICAIS
Certa feita, Rubem Braga, em uma
de suas crônicas, nos contou que ele estava em seu canto e, lá pelas tantas, alguém
bateu em sua porta. Ele foi até a entrada de sua casa e, antes de abrir, como
de costume, disse em alto e bom som: “quem é”? E, do outro lado, veio a resposta:
“não é ninguém não. É só o padeiro”.
Ele abriu a porta, pegou as encomendas
feitas por sua esposa, pagou o rapaz e lhe perguntou: “como assim, ninguém?” E
o rapaz, de olhos miúdos e com um largo sorriso no rosto, lhe disse que numa
determinada ocasião ele foi levar uma encomenda numa casa. Nessa, uma bela moça
atendeu a porta e, lá de dentro, ouviu uma outra voz feminina – provavelmente a
mãe da senhorita – perguntando quem era, e aí da moça disse, bem alto: “não é
ninguém não. É só o padeiro”.
Rubem Braga ficou congelado após o
fim do causo, sem saber o que dizer. Quanto ao rapaz, esse estampou em sua face
um aristocrático sorriso, despediu-se e seguiu seu caminho com a alegria típica
daqueles que estão cientes de que realizaram com maestria o seu dever, pouco
importando se a pessoa que recebeu os seus préstimos sabe ou não quem ele é.
E o rapaz se empirulitou pela rua
sem que ele tivesse tempo de perguntar o seu nome.
E o que impressiona na figura
desse indivíduo sem nome é que ele não se incomodava nem um pouco com isso. Nem
um pouco. Bem diferente de nós, diga-se de passagem. Nos dias atuais, Deus nos
livre e guarde de sermos tratados como um ninguém. Que São Jorge nos defenda
disso.
Pois é. Frente a um causo como
esse nos damos conta do quão frágeis nos tornamos e acredito que uma grande
fonte dessa nossa fragilidade diante da vida esteja no excessivo amor próprio
que cultivamos em nosso coração. Amor próprio que é muitíssimo estimulado por
esse subproduto do marxismo, que é politicamente correto, que anda de mãos
dadas com o consumismo bocó que faz muitíssimos olhinhos brilhar só de pensar
numa vitrine.
Se havia uma coisa com que o nosso
amigo padeiro, de nome desconhecido, não se preocupava era com ele mesmo. Nada
disso. Estava interessado no bem do outro. Preocupação que ele expressava não por
meio de palavras, mas sim, através da realização de atos. No caso, a entrega dos
pães e demais quitutes que eram solicitados. Um pequeno gesto que revelava a
sua grandeza; que era feito com tanta bondade que marcou o coração do grande
mestre dos cronistas brasileiros.
Noutra ocasião, e a partir doutra
pena e tinteiro, fora dito algo similar. Foi mais ou menos na mesma época, a partir
da escrivaninha de Gustavo Corção que, por sua deixa, dizia que enquanto
escrevia ele observava atentamente as estantes onde estavam seus livros e pensava
no carpinteiro que as fez, no seu trabalho; acariciava a escrivaninha e pensava
nos operários que a confeccionaram, mirava cada objeto de sua morada, que trazia
algum conforto para sua vida, e matutava nas inúmeras pessoas - cujos nomes ele
não sabia, cuja feição ele desconhecia - que contribuíram para que ele pudesse estar
ali vivendo a sua vida.
Tanto o Braga quanto o Corção nos
lembram, cada qual do seu jeitão, que somos muito mais devedores do que somos capazes
de admitir. De certa forma, ambos concordam com Leo Bloy que dizia que, no fundo,
não passamos de um bando de indigentes ingratos.
É. Se formos sinceros conosco mesmo
iremos reconhecer, envergonhados, que recebemos muito mais dessa vastidão de
almas, que chamamos de sociedade, do que oferecemos uns aos outros. Não apenas
isso. Se nos tornássemos cônscios dessa realidade, francamente, creio que teríamos
nossa alma tomada por uma beleza sem par, por um profundo sentimento de gratidão
e por um desejo abnegado de servir.
Porém, atualmente, não é bem
assim que a banda toca. Não são poucas as figuras que acreditam, sinceramente,
que o mundo tem uma dívida para com elas. Muitas das vezes somos essa figura
que, ao sentir-se tolhida em algo, acredita que o perrengue sofrido seria um
drama cósmico central na história da galáxia, tamanha é nossa fraqueza moral,
tão grande é nosso amor próprio, que nos leva a enxergar e reconhecer apenas como
real aquilo que está dentro dos limites das cercanias de nosso rancho umbilical.
Enfim, é possível que um e outro
leitor, amigo ou não, esteja fevoso da vida, dizendo para si mesmo: quem esse
caipora pesteado pensa que é pra dizer um troço desse. Bem, se for o seu caso,
caríssimo leitor, lhe digo, na lata e sem pestanejar: apenas mais um ninguém
entre tantos outros.
Escrevinhado por Dartagnan
da Silva Zanela
Quaresma de São Miguel.
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Essa iniciativa tem o apoio cultural de XerinhoBão – difusores, home spray, águas de
lençóis & óleos essenciais DoTERRA.
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Muito
obrigado por ter lido nossa modesta escrevinhada até o fim e, se você achou o
conteúdo da mesma interessante, peço, encarecidamente, que a recomende aos seus
amigos e conhecidos, compartilhando-a. Desde já, te agradeço por isso.
e-mail: dartagnanzanela@gmail.com
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