A LUZ DA VIRTUDE DESDENHADA



É humilhante quando alguém aponta um erro cometido por nós. Pouco importa se é um gesto delicado ou abrupto, quando somos chamados para depor diante do tribunal da nossa consciência, para darmos testemunho de nosso equívoco, dá vontade de cavar um buraco e se enfiar dentro dele e nunca mais sair, não é mesmo? E que bom que é assim, pois a vergonha causada frente ao erro cometido faz-nos lembrar - para sempre - do acerto que escapou por entre nossos dedos. Agora, se a vergonha não mais encontra abrigo em nossas ventas, é porque há algo de muito errado em nosso coração.

Sermos capazes de sentir vergonha faz um bem “danado” para alma, mas não apenas pra ela; envergonhar-se é fundamental para o aprimoramento de nossa capacidade de compreensão, porque, admitamos ou não, o desenvolvimento de nossa inteligência depende do cultivo de certos elementos morais e éticos que, se não se fizerem presentes no âmago do nosso coração, ao invés de termos a ampliação do raio de ação de nosso entendimento, acabaremos por restringi-lo de maneira bastante severa [1].

Hoje, fala-se muito, discute-se um bom tanto a respeito da objetividade ou subjetividade do conhecimento; divaga-se sem parar sobre as supostas vantagens do relativismo moral e cognitivo e, diante disso, fico cá com meus alfarrábios a matutar: qual a relevância de tudo isso? Sou franco em dizer que, em todo esse parlatório há uma imensa perda de tempo, um desperdício descomunal de energias humanas que poderiam ser utilizadas duma forma, no mínimo, mais interessante.

Digo isso não por pirraça. Nada disso. Por favor, não me entendam mal. Entendo, perfeitamente, que existem várias perspectivas possíveis que podem ser apresentadas frente a um assunto, porém, tudo isso acaba se degradando quando não partimos do ponto fundamental para a construção do conhecimento e, esse ponto, não seria o fato do conhecimento ser subjetivo ou objetivo, se o dito cujo deveria ser parcial ou não, nada disso; a pedra basilar seria sabermos se estamos realmente procurando ser sinceros ou não frente àquilo que estamos aprendendo, diante daquilo que estamos fazendo [2].

Sinceridade intelectual é um pressuposto moral indispensável para que possamos expandir o raio de abrangência das luzes de nossa inteligência. Sem isso, tudo acaba sendo reduzido e restringido pelas confortáveis sombras das dissimulações socialmente aceitas, sejam elas diplomadas, midiatizadas, meramente costumeiras ou as três coisas juntas e misturadas.

Se não somos capazes de dizer, com franqueza, para nós mesmos, que não sabemos algo, dificilmente iremos nos abrir para conhecer esse algo e, fazendo isso, muitíssimas vezes, acabamos por opinar levianamente sobre temas que mal e porcamente conhecemos; assuntos que até a véspera ignorávamos soberbamente e que, mesmo depois de termos, todo pimpão, parlado sobre uma determinada bagaça, continuaremos a desprezar olimpicamente o assunto que acabamos de palpitar por simplesmente não termos cultivado a virtude da sinceridade intelectual.

Sim, é uma bela porcaria isso e, infelizmente, tal impostura acaba sendo frequentemente estimulada por meio dos mais variados estímulos que se fazem presentes na sociedade contemporânea, que nos excita inadvertidamente a opinarmos sobre tudo, como se nossa ignorância presunçosa tivesse ganho algum valor aurifico simplesmente pelo fato de nós a termos vocalizado na forma duma opinião [3].

Procedendo assim, sem querer querendo, acabamos por cair no mais vil autoengano.

Talvez, por isso, muitas vezes achamos bonitinho falar levianamente sem saber o que, e do que, estamos falando; e não paramos com isso porque sentimos que estamos encantando aqueles que nos ouvem distraidamente e, ao seu modo, curtem esse tipo de simulacro de “criticidade”, que, no fundo, não passa duma tremenda furada.

E se assim seguimos, caminhando e cantando, de autoengano em autoengano, vamos atrofiando a nossa capacidade de discernimento, mutilando nossa inteligência e, de quebra, pervertendo o nosso caráter [4].

Noutras eras, dum modo geral, as pessoas aprendiam humildemente a reconhecer as suas ignorâncias. Hoje, os tempos são outros e, não são poucos os indivíduos que, soberbamente, estufam o peito para, com aquele olhar de nojinho, desprezar todo o conhecimento que lhes falta, orgulhando-se da presunção oca que ocupa o espaço que um dia foi, no seu coração, o altar do saber.

Para não tomarmos mais o seu tempo, amigo leitor, sejamos curtos e grossos: fizemos esse rodeio todo entre linhas tortas e palavras mal grafadas, para dizer que sentir vergonha é bom e que é uma das partes fundamentais para o aprendizado de qualquer coisa em todas as etapas da vida.

Aprender a lidar com ela, com a vergonha, é algo que, no mundo atual não é mais está ensinado, porque, como dizem os especialistas, pode traumatizar.

Enfim, findemos por aqui antes que nos sintamos traumatizados também.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, em 03 de março de 2020, dia de São Casimiro e São Lúcio I.

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[1] CARVALHO, Olavo de. Mitos e símbolos no filme “O Silêncio dos Inocentes”. Rio de Janeiro: IAL & Stella Caymmi, 1993.

[2] LAVELLE, Louis. A consciência de si. São Paulo: É Realizações, 2014.

[3] CRISTALDO, Janer. Como ler jornais. São Paulo: Editora Ebooks Brasil, 2006.

[4] CARVALHO, Olavo de. O Caráter como Forma Pura da Personalidade. Rio de Janeiro: Astroscientia Editora, 1993.


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