AMANHECE NAS MARGENS DO IGUAÇU
Antes do sol cortar, com seus
raios apolíneos, a penumbra da madrugada, o galo desperta e coloca-se a cantar.
Quer dizer, assim era; hoje, não mais. Quem agora me coloca desperto é o celular
que, do seu jeito, tomou o lugar do relógio e do galo.
Enfim, com ou sem o canto
galináceo, antes do sol tomar o seu devido lugar na abóboda celeste, seu
Tibúrcio se apresenta para mais um dia que se inicia, com aquela disposição de
galderio que ele tão bem aprendeu com seu pai - que Deus o tenha.
Tibúrcio, o homem da língua
ferina, num certo dia, logo após ter lavado seu rosto no tanque, se demorou por
alguns instantes frente ao reflexo de sua face que lhe era apresentada pelo
velho espelho, um tanto oxidado, pendurado num preguinho numa das tábuas da
parede da lavanderia de sua modesta casa.
Olhou; massageou o rosto
firmemente em movimentos que iam da direita para esquerda e vice-versa. Olhou
fixamente para a cicatriz que ele ostentava sob seu supercílio direito e parou.
Volveu o rosto novamente; olhou outra vez e constatou que precisava fazer a
barba e, por ser quem é, concluiu que não iria fazê-la, só para contrariar-se.
O velho era e é assim mesmo. Ele
sempre dizia que a gente deveria, de vez em quando, contrariar-se; que isso era
muitíssimo importante para que aprendêssemos a ser gente, porque quem não
aprende a passar uma precisão aqui e outra acolá, sofreria muito na vida, pois
viver, fundamentalmente, é ser contrariado pelos dias, pelos homens e pela
vida.
E o velho tinha e tem razão no
que diz. Crianças, dum modo geral, reinam feito um Ford velho quando não
conseguem realizar aquilo que desejam.
Basta que o guri não ganhe o
docinho na hora que quer, que ele não possa brincar no momento que deseja, que
está feito o furdunço. De tão feio que é o fiasco encenado pelos pentelhos que
acaba sendo bonito de ver.
Ora, contrariar os pequenos nas
pequenas coisas de suas vidinhas nada mais é do que educá-los, prepara-los para
as grandes contrariedades que a vida irá lhes apresentar. Admita-se ou não, a
vida é isso; e para isso devemos prepara-los.
Detalhe importantíssimo que o
velho Tibúrcio sempre gostava de enfatizar em nossos dedos de prosa: quem não
aprende isso na sua meninice acaba se tornando, em idade adulta, um estorvo na
vida dos outros; na vida daqueles que são próximos a ele e, também, na vida dos
viventes que só o conhecem de varagem.
Pior! Por nunca ter sido
contrariado na infância e na sua mocidade, o infeliz acredita, sinceramente,
que o normal na vida seria que os dias, as horas e os outros sempre estejam de
acordo com as suas vãs vontades e, por isso, qualquer um que o contrarie passa
a ser visto como um tipo de malvado enxerido; preferido, jamais.
Pois é. Possivelmente um
indivíduo que agem mais ou menos assim não seria deste jeito se, em sua
meninice e mocidade, tivesse tido a bênção de ter tido em sua vida alguém
disposto a contrariá-lo ao invés de ter convivido apenas com adultos que o
adulavam ao invés de educá-lo. Ele foi enganado e nem se deu conta disso.
Por isso e por fim, mesmo estando
com o rosto marcado pelas cálidas mãos de Cronos e com as madeixas agrisalhadas
pelo varar das primaveras, seu Tibúrcio continua a contrariar-se na solidão de
seu rancho porque, segundo ele mesmo diz, o nosso maior e pior bajulador somos
nós mesmos, e se não nos dispomos a, todo dia, domar a besta vadia que nos
habita, ela nos devorará, tornando-nos uma pessoinha de merda.
Por isso, sem barbear-se, o velho
foi tomar o seu café amanhecido para, em seguida, tocar o eito do dia.
Escrevinhado por Dartagnan
da Silva Zanela,
em 09 de maio de 2019.
Comentários
Postar um comentário