UMA PEDRINHA NO SAPATO
Tem
um trem, lá pras bandas da Amazônia, chamado pelos índios de “uirarí”, que é
extraído de uma planta chamada por eles de “curare”. Esse trem é um diacho de
venenoso. É usado para caçar. Basta um cadinho na ponta da flecha, ou do dardo,
que qualquer animal que for atingido entregará os pontos.
Dizem
que a vítima primeiro fica atônita e, logo em seguida, vem as primeiras
vertigens junto com alguns vômitos e, em dois palitos, já surge do nada o meme
do caixão. E, ao que parece, a bagaça não tem antídoto não.
É.
Esse tal de “uirarí” é admirável mesmo. Mortalmente admirável.
Falando-se
em admirável, se tem um caboclo que tem uma vida porreta é o tal de Santo
Antão, também conhecido como Santo Antônio do Egito. É difícil não afogarmos
nossos zóios em lágrimas com as notícias de sua vida que nos chegam através das
páginas escritas por seus biógrafos.
Há
uma passagem, que agora compartilho, que remonta os primeiros anos após a sua
conversão onde, após um período de jejum e oração, Nosso Senhor apareceu e
disse a Antão que ele deveria aprender a rezar como o sapateiro de Alexandria
para ganhar o reino dos Céus.
Ao
ouvir isso o homem levantou-se e zaz zaz colocou-se em passo acelerado na
direção da cidade para ver se encontrava o dito cujo do sapateiro para aprender
direitinho as rezas.
Procurou,
procurou, até que lhe mostraram o fazedor de sapatos, silente, sentado à porta
de sua oficina, de olhar sereno, pernas cruzadas, costurando o couro enquanto
via as pessoas perambulando pra lá e pra cá. Sem demoras foi até ele.
Os
dois ficaram horas e horas assuntando sobre a vida e a respeito dos mais
variados assuntos até que chegaram na história da conversão do humilde
sapateiro. Ele contou a Antônio tudo como aconteceu e, então, ele tomou peito e
perguntou ao homem como ele rezava e, mais ou menos desse jeito, respondeu: sabe
moço, eu fico aqui, o dia todo, cumprindo com minhas obrigações e vendo as
pessoas viverem as suas vidas e aí, digo nos átrios do meu coração, todo dia, o
dia todo, a seguinte jaculatória: todos irão se salvar, todos, menos eu.
Todos
irão se salvar, todos, menos eu.
Caramba.
Ainda hoje, mesmo depois de tantos anos que li pela primeira vez essa
historieta, me arrepio. Não preciso nem dizer, mas o farei: Santo Antão
aprendeu direitinho como rezar. Quanto a mim, não posso dizer o mesmo, tendo em
vista que sou, como diz Rubem Braga, um cretino por profissão. Que vergonha.
Que baita sem vergonha.
Saindo
dos primeiros séculos da Cristandade, cá estamos nós, em meio a um mundo cuja
mentalidade se vê agrilhoada pelos trejeitos e cacoetes politicamente corretos
que, enquanto subproduto do marxismo e de modo sorrateiro, nos adestram a
agirmos duma forma bem diferente.
Uma
pessoa, quando se identifica com um grupo, com um partido, com um movimento
político [dito social] ou algo que o valha, passa a crer que aderiu a
construção de um mundo “mais melhor de bão” e, por isso, acaba por acreditar
que ela e os seus companheiros estão acima de qualquer julgamento, sentindo-se
autorizados a fazer qualquer barbaridade, tendo em vista que tudo isso é em
nome de uma boa causa. Aliás, toda monstruosidade é perpetrada em nome de uma
boa causa.
Por
isso, nesse caso, a reza é diferente da prece do Santo: todos irão se salvar se
nós, os limpinhos, dissermos que elas podem ser salvas [e Deus que não se meta
no assunto].
Quanto
aos condenados, esses serão cancelados pelo eco das vozes despersonalizadas da
multidão agrupada em torno das palavras de comando que emanam do monstro
ideológico desprovido de coração que amortizou a consciência de cada membro da
turma.
É.
Espírito de legião é assim mesmo. Bem desse jeitão.
De
todos os cacoetes mentais politicamente corretos que foram disseminados pelos
grupos que se arrogam a condição de porta-vozes dos “frascos” e “comprimidos”,
e que engessam qualquer possibilidade de diálogo, temos um que, no mínimo, é
curioso: o tal “lugar de fala”.
Vejam
só como são as coisas: se uma pessoa não pode falar nada à outra porque ela não
viveu uma vida similar a dela, porque não sofreu o que ela sofreu, de cara
temos duas perdas tremendas. A primeira é a própria inviabilidade do diálogo,
tendo em vista que ninguém pode dizer nada a ninguém porque cada um está no seu
quadrado e não tem como se colocar no redondo do outro.
Segundo:
se apenas e tão somente os membros do meu clubinho podem falar a respeito de
nossas incongruências, nós acabamos inviabilizado qualquer possibilidade de
empatia, de construção de pontes para que os outros possam ver o mundo através
dos nossos olhos e vice-versa.
E
não é só isso. Duma forma muito sutil e sofisticada, os indivíduos que aderem a
esses subprodutos ideológicos acabam se colocando acima de qualquer crítica,
acreditando, sinceramente, que eles seriam almas puras, redentoras da
humanidade; não porque são como o sapateiro de Alexandria, mas porque são
filiados ou simpáticos a um partido político, ligados a um movimento dito
social, com sua vida alicerçada numa ideologia totalitária que, como toda
ideologia, promete a edificação do paraíso na terra por pessoas que, como elas,
sentem-se incorruptíveis, apesar de serem apenas o que são.
Tal
situação, como todos sabemos, acaba por estimular o aprofundamento das
diferenças humanas de todos os naipes e, subjacente a isso tudo, temos o
fomento dos mais variados tipos de conflito. Homens contra mulheres, negros
contra brancos, homo contra héteros, tudo contra todos, reificando as minorias,
usando-as como um reles instrumento para realização de seu projeto político de
poder ao mesmo tempo que dizem ser seus inquestionáveis representantes.
É. E
aí daqueles que ousarem não calçar o sapato identitário que lhes é imposto
pelos porta-vozes “do bem”, do “ódio do bem”. Com certeza receberão na testa o
“rótulo de besta”, de párias, para perambular num apocalipse sem juízo final,
porque a sentença já foi dada por eles com base em suas crendices políticas.
Enfim,
podemos dizer que o politicamente correto, com suas cizânias semeadas em todos
os cantos do nosso triste país, seria o “uirarí” das tribos da “fofura
totalitária” que prometem um dia construir um suposto “mundo mais melhor de
bão” na base da calúnia e do rancor ideologicamente manipulando, agindo com
virulência contra todos aqueles que não rezam na mesma capelinha do Butantã.
Mas
esse “uirarí” tem antídoto. Tem sim senhor. É a oração do sapateiro de
Alexandria que foi aprendida por Santo Antão.
É
isso aí. Simples assim, por isso complicado. Complicado porque insistimos em
continuar cultivando essa surrada pose bestial de cágado engajado e tranquilo.
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Muito obrigado por ter lido nossa modesta escrevinhada até o fim
e, se você achou o conteúdo da mesma interessante, peço, encarecidamente, que a
recomende aos seus amigos e conhecidos, compartilhando-a. Desde já, te agradeço
por isso.
Escrevinhado
por Dartagnan da Silva Zanela
Site:
http://professorzanela.k6.com.br/
e-mail:
dartagnanzanela@gmail.com
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