UM SORRISO PRA LÁ DE AMARELADO


Uma camada significativa da sociedade, particularmente a que se considera a mais esclarecida, encontra-se meio que adoentada; e não é porque tenha sido infectada pelo tal do corona. A alma de muitos está enferma e padece, cronicamente, duma severa perda do tal senso das proporções.

Aliás, quem nunca teve uma recaída aqui e um deslize acolá, no que tange a falta de noção que atire a primeira pedra.

Pois bem, sigamos com o causo: um dos primeiros sintomas disso, da perda do senso das proporções, é a facilidade com que muitas vezes mergulhamos de cabeça num clima de histeria, passando a crer não tanto no que a realidade, nua e crua, nos mostra, mas sim, apenas naquilo que nossos ouvidos moucos ouvem. Aí, num processo mágico, passamos, literalmente, num lance auto hipnótico, a enxergar justamente aquilo que lhe é sussurrado em seus ouvidos.

Um bom exemplo disso é vermos algumas pessoas rotulando gracejos, piadas e similares como se esses trens fossem a expressão cristalina daquilo que elas, e seus iguais, rotulam como sendo casos típicos de “discurso de ódio”.

Porém, o engraçado é que essas mesmíssimas pessoas não veem o convite feito aos transeuntes duma grande capital para cuspir nas fotografias de figuras públicas como sendo uma manifestação disso, de um discurso de ódio. Isso pra elas não seria nada odiento não. Defecar, literalmente, no retrato de seus desafetos políticos também não.

Aliás, vocês se lembram desse ocorrido? Como esquecer aquela galerinha crítica cuspindo nas fotos de alguns políticos e, principalmente, daquela senhora que flexionou suas pernas e arrebitou sua protuberância para dar aquela cagadinha numa foto do então deputado Bolsonaro.

Sim, se eles querem fazer isso para manifestar, como direi, sua profunda indignação através de seus argumentos, que foram processados no âmago de suas pessoas, lá junto das tripas que vem do bucho, quem sou eu para dizer que não pode, não é mesmo? Longe de mim.

De mais a mais, se pararmos pra matutar um cadinho, veremos que temos, na sociedade contemporânea algumas manifestações culturais que, de certa forma, apresentam esse tipo de comportamento como se fosse algo digno de aplausos, respeito e replicação.

Refiro-me aos embalos de sábado à noite ao som de uns troços que, francamente, não sei dizer exatamente o que seriam.

Raramente saio. Raramente mesmo e, quando caminho pelas vielas da boemia dos dias atuais, volto um tanto que aturdido e com um monte de questões e considerações que, para ser franco, prefiro apenas partilha-las com meus alfarrábios enquanto carpo meu pequeno roçado em minhas horas de folga.

Porém, de todas essas maquinações que se fazem presentes em meus miolos, há uma que não tenho como não rabiscar e compartilhar. É a visão da galera bailando ao som dos ruídos luxuriantes que saem das caixas de som.

É curioso, pra dizer o mínimo o espetáculo que é encenado todo fim de semana pelas mais variadas alminhas. Lá estão, abençoados e abençoadas, faceiros da vida, com seus joelhos levemente flexionados, com as mãos apoiadas sobre os mesmos; glúteos arrebitados, ombros levemente contraídos, cabelos para o lado, emoldurando aquela carinha marota que olha para trás e, tudo isso, acompanhado por aquele requebrar dos quadris, embalado por ritmos alucinados, como se as ancas estivesse a pedir, desesperadamente, para que alguma alma generosa limpe sua poupança.

Sim, sei que isso é grotesco, tanto quanto a manifestação “cívica” de defecar no retrato duma pessoa, mas é o que temos para o momento como modelo de argumento e sinônimo de entretenimento que é expresso de forma caricatural enquanto uma, como direi, legítima manifestação cultural.

E o “discurso de ódio” como é que fica nessa história toda? Pois é. Onde ficará o dito cujo? Provavelmente será tido como tal toda e qualquer observação contrária a esse tido de atitude de elevada honorabilidade. Inclusive e, quem sabe, essa irrelevante escrevinhada, acaba sendo considerado como sendo uma preleção odienta, tamanha é a falta de noção que tomou conta da cumbuca de muitos na sociedade contemporânea.


Escrevinhado em 16 de março de 2020, dia de Santo Abraão e Santa Eusébia.

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