O MAU USO DE CERTAS FERRAMENTAS
Há uma velha e
divertidíssima crônica de Millôr Fernandes intitulada “O direito ao phoda-se”.
Quer dizer, penso que esse é o título da dita cuja, se minha memória, essa
safadinha, não está me traindo mais uma vez com as minhas lembranças.
Seja como for, o
teor da referida crônica está contido no seu título, esteja esse preciso ou
não, de acordo com minhas recordações.
Todo mundo,
segundo o divertidíssimo autor, tem o sacrossanto direito de mantar tudo as
favar, porque isso seria algum muito bom, capaz, inclusive, de salvar uma alma;
e de fato é, tendo em vista que esse negócio de ficar guardando rancor e
ressentimento é um trem ruim pra caramba.
Guardar rancor,
meu chapa, faz mal pra saúde, para o coração e, principalmente, perverte a alma
da gente [1]. O negócio mesmo é espalhar o rancor para todos os lados, pra ver
se ele desidrata e morre seco sob o calor do sol e, tudo isso, junto com uns
pares de arrodeios de boas risadas.
E verdade seja
dita: nada que não preste resiste a isso.
Por isso,
prefiro mil vezes a companhia de um “boca brava”, como dizem os gaudérios, do
que a elegante companhia de pessoas finas, prudentes e cheias de sofisticação.
Nestes, nada é verdadeiro. Nem o tom da voz, nem o olhar, nem o sorriso, nem o
fedor, nada.
Pior! Gente
prudente e sofisticada, que tem sua boca desinfetada diariamente com água
sanitária, e aromatizada com iguarias campestres, pra não dar na pinta, além de
ter o coração carcomido pela mágoa rasa, tem o péssimo hábito de querer insultar
os outros com sofisticação e, ao invés de utilizar um mero “phoda-se”, prefere recorrer
ao uso de termos como “alienado”, “fascista”, “camada quatro”, “analfabeto
funcional”, “sanguíneo”, “homofóbico”, “racista” e assim por diante.
Oxi! Mas e qual
é o problema que há nisso? O problema é que tais termos não são xingamentos.
São utilizados por muitos como tal, mas não o são. Esses termos são conceitos
descritivos e foram pensados e concebidos não para serem utilizados
levianamente para colar nas paletas de nossos desafetos como rótulos infame -
feito moleque que gruda nas costas dos coleguinhas um papel escrito “me chutem”
- ou como um porrete para batermos nas pessoas. Nada disso [2].
Cada um desses
termos foi concebido, sim, para nos auxiliar a descrever e compreender um
determinado fenômeno [3], não para manifestar nossa insatisfação ranheta com
“A” ou “B”.
Nesse sentido,
quando reduzimos um conceito descritivo a categoria de mero insulto para, numa
catarse só, esvaziarmos todo o chorume que está em nosso coração, nós estamos
gerando uma profunda desordem em nossa alma, pois passaremos a confundir a
nossa inquietação interior com o significado originário do conceito que está
sendo utilizado por nós de maneira inapropriada.
Detalhe
importantíssimo: conceitos são ferramentas da mente humana e, como as
ferramentas manuais, se não forem utilizadas de forma apropriada, acabam
causando acidentes e toda ordem de problemas em nossa alma e em nosso em torno
[4].
Feliz ou
infelizmente, a degradação de nossa alma e a corrupção dos princípios que
norteiam nossas ações nesse mundo, sempre ocorre de maneira lenta e ela, a
corrosão de nossa capacidade de compreensão, começa pela corrupção da
linguagem, como nos ensina Octávio Paz [5], e esse uso inapropriado dum
conceito descritivo, como se ele fosse um rótulo cínico e difamatório, como um reles
insulto, é um bom exemplo desse tipo de corrupção que, por sua natureza, é a
mãe de todas as corrupções. Se não for de todas, ela o é de muitíssimas.
E tem outra: de
tanto usarmos um conceito de forma indevida, ele acaba por perder a sua
serventia primeira e, bem provavelmente, quando nos depararmos com o fenômeno
que esse conceito propunha-se descrever, para nos ajudar a compreendê-lo a
agirmos de modo apropriado e eficiente, nós não mais seremos capazes de
reconhecê-lo porque a ferramenta não tem mais serventia alguma.
E se não
reconhecemos um perigo real não somos capazes de agir e reagir de modo
realista.
Sim, sim, sei
que uma obra, depois de publicada não mais pertence ao autor, mas sim, ao
público; todavia, sejamos razoáveis, e não troquemos os pés pelas mãos; se
possível, não enfiemos os termos e conceitos em lugares indevidos porque,
admita-se ou não, eles não foram feitos pra isso.
Enfim e por fim,
quando estivermos destemperados e irritadinhos, um phoda-se, ou similares,
junto com aquela dose dumas boas risadas, já são mais que suficientes.
Escrevinhado
por Dartagnan da Silva Zanela, em 09 de março de 2020, dia de São Domingos
Sávio e de Santa Francisca Romana.
__________
[1] KEMPIS,
Tomás. A imitação de Cristo. São
Paulo: Editora Paulinas, [s/d].
[2]
ROSENSTOCK-HUESSY, Eugen. A origem da
linguagem. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2002.
[3] MARIÁS,
Julian. Introdução à Filosofia.
[4] CASSIRER,
Ernest. Ensaios sobre o Homem. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 1994.
[5] PAZ,
Octavio. O labirinto da solidão. Rio
de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984.
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