NUMA ASSEMBLEIA DA CASA VERDE
Há um conto de Lima Barreto - A doença do Antunes, se não me falha
a memória - onde nos é narrada a história dum médico, um tal de doutor Gideão,
se não estou enganado e que, diziam as boas e as más línguas, era um médico muito
bom - o bicho era fera mesmo - e, por isso mesmo, sempre reunia uma multidão na
porta do seu consultório.
Certo dia, um sujeito, um tal de seu Antunes, marcou uma consulta
com o tal doutor. Pagou a dita cuja que, já naquela época, não era nem um pouco
doce não.
Ele ficou esperando um tempão para ser atendido. Esperou, esperou,
olhou umas trocentas vezes no relógio, até que foi chamado.
Entrou, cumprimentou o médico que, em seguida, se pôs a
examiná-lo. Após terminar o doutor Gideão disse-lhe que ele estava bem; forte e
guapo. O índio velho se indignou com a notícia que lhe fora dada. Como assim não
tinha nada? Ele tinha que ter alguma coisa. Como assim estava são? Ele pagou
uns pares de contos de réis para que o doutor dissesse isso pra ele? Era o fim da
picada.
Pois é. Mas estava são de lombo e, por isso, desenrolou-se um baita
entrevero entre os dois, porque o xiru queria porque queria estar pesteado de
alguma coisa. Para ele era inadmissível ter pago por uma consulta com um médico
tão bem afamado e não ter nada.
Bem, saltando das páginas de Lima Barreto para as páginas da
vida contemporânea, vemos que muitas vezes temos um olhar meio que enviesado
sobre tudo e a respeito de todos devido ao nosso apego as imagens e palavras, devidamente
cevadas pela mídia e pelas goelas que integram a multidão que, por sua deixa, e
sem nos darmos conta, acabam gerando em nós inúmeras expectativas descabidas que
ficam atormentando em nosso desassossegado coração.
E assim acabamos, muitas vezes, ficando estrebuchados diante do
alarido sem rosto e sem sentido, impotentes devido a nossa falta de segurança
interior que termina sendo amplificada por ignorarmos as significações e as
intenções que estão patentes nos atos e palavras que pululam na sociedade, fervilham
nos veículos de mídia e ecoam em nossa alma desarmada.
Eco esse que acaba por calar a nossa voz interior; a suave voz que
emana do fundo insubornável do nosso ser. Alarido esse que, num mefistofélico
truque, acaba tomando o lugar da nossa consciência e, ao invés de nos guiar pelo
carreiro do prudente bom conselho, acaba por nos atirar na ladeira da histeria
para, sem querer querendo, nos largar de prancha na baixada da desesperança.
De modo similar ao seu Antunes, do conto de Lima Barreto, nós
acabamos muitíssimas vezes por fazer isso: dando ouvidos para as sandices midiaticamente
maquinadas, e histrionicamente replicadas pelos boçais de plantão, como se essa
balbúrdia fosse a voz da verdade que habita em nós quando, na realidade, não passa
dum ruído circunstancial, cheio de malícia, que é largado feito semente de erva-daninha
no meio do trigal do nosso ser.
E isso, infelizmente, é tão certo que, basta vermos quantas e quantas
vezes nós pensamos no que os outros irão pesar sobre isso ou aquilo que matutamos
ou fazemos a respeito de algo; o quanto nos inquietamos com o que irão dizer a nosso
respeito, como se tal atitude fosse uma forma prudente e sofisticada de exame
de consciência, quando, na realidade, estamos subordinando-nos aos ditames de
forças que desconhecemos e ignoramos.
Ver as coisas como elas realmente são não é uma tarefa fácil. Nem
um pouco. E vejam que não estou me referido a possíveis e prováveis conluios
internacionais, siderais, galácticos ou interdimensionais.
Refiro-me as absurdidades nossas de cada dia; a nossa
incapacidade de ver, com relativa clareza, a real intenção de nossas palavras e
atos que se encontram soterrados por uma montoeira de entulhos emotivos e ideológicos,
midiáticos e societais, psicológicos e morais, tudo isso com mais um tanto de
bagulhos ressentidos e egolátricos.
Não é à toa que acabemos ficando assustados com qualquer brisa
que é anunciada pela mídia como se fosse um vendaval. Não é por acaso que o
falatório dos sepulcros caiados acaba nos impressionando com tanta facilidade.
E a culpa de estado de confusão no qual muitas vezes nos
encontramos não é fundamentalmente dessas tranqueiras não, porque esses trens
fuçados estão fazendo o que é da natureza pervertida deles.
O grande problema, penso eu, é que nós não nos incomodamos muito
em negarmos os fatos e, com eles, a nós mesmos, desde que não estejamos
sozinhos fazendo isso, tamanha é a alienação que divide a nossa alma, corrompe
o nosso olhar e cala nossa consciência.
Escrevinhado por Dartagnan
da Silva Zanela, em 07 de abril de 2020, dia de São João Batista de La Salle.
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