ENTRE RUI E OS BARBOSAS
Um discurso é um momento ímpar onde
uma gentil alma, na posição de orador, tem a grata oportunidade de partilhar
com os seus algumas reflexões sobre a vida, sobre a trama de sentidos que a compõe.
Infelizmente, tais almas são
escassas atualmente nessas terras de Pindorama. Nesses momentos únicos ao invés
de termos a partilha de luzes temos, com uma frequência indesejável, a afronta
das sombras da ignorância presunçosa onde tais momentos são desperdiçados ou com
colóquios grosseiros, ou com a pura falta de amor ao próximo à verdade.
Chega ser sofrível, por exemplo,
ir a uma formatura e ouvirmos “otoridades”, diplomadas ou não, discursar. Dependendo
do rincão que se esteja, ouve-se preleções de improviso que não chegam nem
mesmo a ser uma fala de meia-pataca; noutros, não passa duma leitura sofrível
de alguma mensagem mequetrefe extraída dalgum site. Enfim, tais momentos acabam
apenas atestando que nessas plagas abundam o desamor pela palavra e,
principalmente, pelo que ela pode fazer por nós e pelos nossos semelhantes
quando manuseada com zelo e destreza.
Lembro-me, de memória, duma
formatura que fui convidado. Salve engano foi no ano de 1999. Uma grande e
pomposa formatura duma Universidade qualquer duma cidade interiorana. Lá pelas
tantas, a Paraninfa duma das turmas fez uso da palavra. A senhora, cujo nome
perdeu-se em meio as brumas de meu desleixo, havia elaborado uma belíssimo
discurso onde a mesma ministrava uma lição final aos presentes sobre ética e
amor ao próximo tomando como referência algumas cenas do filme dinamarquês “A
Festa de Babette” (1987), drama dirigido por Gabriel Axel.
Porém, enquanto deleitava meus
ouvidos na toada da oradora, enquanto a nau de minha alma singrava pelas águas
cristalinas advindas da lição que estava sendo ministrada, eis que em meio à
multidão um grupelho interrompe o discurso com uma buzina estridente seguido
por alguns gritos que, de modo bárbaro, pediam o fim do colóquio.
A senhora pára, silencia brevemente,
respira, e conclui o seu discurso, a sua lição tão gentilmente elaborada pela
suas mãos e que fora tão aviltada pela audiência bestialmente ululante que sabe
apenas idolatrar títulos, ao mesmo tempo em que despreza o saber.
Ao ver aquela cena, pensei: essa turba
ignóbil não é digna de ouvir as palavras proferidas. O que elas queriam era
apenas o canudo e a balburdia que se seguia após a cerimônia e nada mais como,
aliás, ocorre frequentemente em nosso entristecido país.
O mesmo pode-se dizer com relação
à Águia de Haia. O Brasil, ou melhor, esse trambolho em que o nosso país se
tornou não é nem digno de sua obra e muito menos da pessoa de Rui Barbosa.
Pensar que uma pessoa da
envergadura dele discursou para os meninos do colégio Anchieta com a mesma
atenção e deferência que discursou em Haia é algo que, por si só, muito nos
revela a respeito de quem foi esse hercúleo brasileiro. Discurso esse que se
fosse proferido hoje, num colégio Brasileiro (ou numa Universidade mesmo),
seria recebido com um esnobe franzir de nariz, tamanho a pequenez que nos
permitimos chegar.
Mas ele é maior que os olhares
amiudados de sua época; ele é maior do que todos nós, pois, como lemos em seu
epitáfio: “Estremeceu a justiça; viveu no trabalho; e não perdeu o ideal”. Quem,
como esse gigante das letras – e de corpo franzino pode mandar escrever em sua
lápide palavras de tão elevado quilate? Quem de nós poderá, com honra, fazer
isso, dizer isso de si sem tremer?
Por isso, deixemos nossa pequenez
de lado e subamos nos ombros desse gigante para vermos melhor o mundo e,
consequentemente, compreendermos com clareza o nosso papel diante da criação.
Deitar as vistas nas laudas da
lavra duma alma tão aquilatada como a do doutor Rui Barbosa é um privilégio que
muitos, com certeza, declinariam frente a essa oportunidade. Mas para aqueles
que desejam estender suas vistas para além do horizonte do momento, as linhas
do discurso proferido no Colégio Anchieta será um deleite estético e
gnosiológico único. Um momento para repensar a nossa vida; a maneira
irrefletida como vivemo-la.
Pra ser franco, se os professores
deixassem as de lado as linhas turvas da lavra de Paulo Freire e passassem a
deitar as suas vistas nesse discurso do Rui, juntamente com as laudas da
“Oração aos moços”, acabariam por edificar uma visão mais elevada sobre o seu
papel junto aos alunos, pois como nos lembra o filósofo francês Jacques
Maritain, em seu livro RUMOS DA EDUCAÇÃO (1959; p 14): “Se é verdade que nosso
principal dever consiste [...] em nos tornarmos no que somos, nada mais
importante para cada um de nós, nem mais difícil, do que nos tornarmos um
homem. A principal tarefa da educação está, antes de tudo, em formar o homem ou
alimentar o dinamismo por meio do qual o homem se faz homem”. E Rui Barbosa
tinha uma clara compreensão disso; compreensão essa que ilumina cada uma das
linhas redigidas por suas austeras mãos que foram pronunciadas aos presentes na
solenidade do Colégio Anchieta.
E assim o é por sermos, jovens e
adultos, profundamente atolados em nossa vaidade que nos faz pressupor sermos pessoas
completas sem ao menos termos começado a continuação da obra iniciada pelo
Criador em nós.
Não apenas nos inflamos com nossa
vaidade, mas por nos encontrarmos assim, cheios de ventania orgulhosa, imaginamos
que podemos modelar os outros a imagem e semelhança de nossa nulidade
existencial. Ou, como disse o velho Rui, “mocidade vaidosa não chegará jamais a
virilidade útil”. Porém, atingirá a petulância mimada, como muito vemos nos
hodiernos dias em nossa pátria.
Por fim, consideramos de
fundamental importância fazer mais uma observação; uma preciosa lembrança. Dentre
os livros que ele tinha na cabeceira de seu leito estava o sapientíssimo IMITAÇÃO
DE CRISTO, que era religiosamente lido, meditado e anotado. Não apenas isso!
Esse monstro sagrado de nossas letras tinha a ousadia de se colocar de joelhos
junto à sua cama, todas as noites para piedosamente rezar.
Bem, mais uma vez, permitam-me indagar,
no silêncio dessas indignas linhas: quantos educadores, hoje, no Brasil,
entregam-se tão devotamente a tal atitude? É difícil de precisar o número dos
que fazem isso, mas não é difícil de imaginar a proporção, não mesmo? Todavia,
não é tão difícil de contabilizar o número, grande por sinal, de intelectuais
que fazem troça da fé em Cristo. Fé essa que se faz presente nas linhas
dirigidas aos moços do colégio que tem a honra de ter o nome de São José de
Anchieta, fé que pulsa vivamente em todas as entrelinhas de sua luminosa
preleção.
Sem mais delongas, deixemos de
lado as palavras desse indigno escrevinhador que ousa apresentar este que
dispensa qualquer apresentação. ECCE HOMO e essa é sua mensagem para todas as
almas, pueris ou senis, de todas as épocas. Aprendamos com ele, com esse seu
discurso, a sermos simplesmente gente e, desse modo, aprendamos a nos tornar
dignos de responder altivamente pelo título de cidadão, fazendo-nos dignos
perante Deus, prestativos para com a nação e bons para com nossos irmãos como
ele procurou ser em sua passagem por esse vale de lágrimas.
Enfim, encerremos essa modesta entrada
e partamos para o prato principal do grande banquete do saber.
Reserva
do Iguaçu, 09 de maio de 2016, sétima semana da Páscoa,
dia de Santa Maria Domingas Mazzarello.
dia de Santa Maria Domingas Mazzarello.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela
Do
fundo da Grota: http://zanela.blogspot.com/
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