DOUTOR GREGORY HOUSE SABIA DAS COISAS
Há mais ou menos uns dose anos,
lembro-me de ter assistido a um dos episódios da série DR. HOUSE que me
impactou duma forma particular. Nesse, uma empresa farmacêutica estava para fazer
uma doação polpuda ao Princeton-Plainsboro Teaching Hospital, onde o Dr. House trabalhava.
Porém, porque sempre tem um “porém”, o doutor Gregory deveria dar uma palestra -
para uma galera - sobre um novo medicamento produzido pelo referido laboratório.
Bem, é claro que o nosso mal humorado
preferido enrola até onde dá para não fazer a dita cuja da preleção em favor do
laboratório, mas chegou um ponto que não mais foi possível; e lá foi o homem
diante dum auditório cheio de pessoas importantíssimas, de todos os cantos do
universo conhecido, para ouvir suas sapientes palavras sobre o tal novo remédio.
Ele foi ao púlpito, tomou o
microfone em mãos e disse algo mais ou menos assim: “É... sim... o novo
medicamento é muito bom... é isso... obrigado” e foi saindo.
Sua chefe, a doutora Lisa Cuddy,
sentada ao lado do CEO da empresa que iria fazer a doação, olha pra ele com uma
cara de quem iria mata-lo umas trocentas vezes e, então, cinicamente ele voltou
ao púlpito e disse algo mais ou menos nesses termos: esse medicamento tem o
mesmíssimo efeito do medicamento “tal”, produzido por essa mesma empresa, mas o
prazo de validade de sua patente está para vencer, por isso o laboratório está
tirando-o do mercado e colocando esse novo medicamento, que está sendo lançado
agora. Medicamento esse que, praticamente, tem a mesma fórmula do anterior,
porém, com um componente a mais, para evitar que o laboratório tenha perdas
financeiras”. Dito isso, ele saiu do palco com sua pastinha de papelão em mãos.
Com essa declaração feita por ele,
o hospital não recebeu a grana, a Cuddy ficou pau da vida e, daquele jeitão, a
vida continuou na série por muitos episódios.
Gosto muito dessa passagem porque
ela, para meu gosto, ilustra bem o que é a tal da ciência moderna.
Quando acessamos a grande mídia, ou
vemos criaturas fofas besuntadas com margarina Doriana falando em nome da ciência,
dá-se a impressão que estamos diante de pessoas dotadas de infalibilidade total
e cabal, tendo em vista que a palavra ciência, na sociedade atual, é envolta
duma aura mítica sem par. Basta evoca-la que todos sentem-se melindrados,
dispostos a ficarem silentes diante do vaticínio que será anunciado por aqueles
que se apresentam, formal ou informalmente, como seus sagrados porta-vozes.
Na verdade, quando falamos em ciência
temos que nos perguntar sobre o que, exatamente, estamos falando, porque essa
palavra se refere não a uma entidade unívoca, mas sim, a uma realidade com múltiplas
dimensões que, por sua deixa, encontram-se imbricadas, juntas e misturas numa
orgia epistemológica sem fim.
Explico-me: quando falamos em
ciência podemos estar nos referindo a ciência enquanto definição, ou seja, como
uma disciplina intelectual que procura construir um objeto a partir de um
fragmento da realidade e, diante dele, essa disciplina propõem-se a elaborar
uma série de métodos e conceitos para poder estuda-lo e formular uma gama de
teorias para procurar explica-lo.
Resumindo: a ciência, por
definição, não estuda a realidade, mas sim, um fragmento dela. Ou, como nos ensina
Edmund Husserl, da mesma forma que não existe uma genética dos triângulos, não
há uma trigonometria das baleias.
Outra face que pode nos ser revelada
quando a palavra ciência é evocada seria o ideal cientifico que, por sua deixa,
nada mais seria que a procura abnegada pela compreensão de algo que integra a
realidade.
Uma terceira face são as intrigas,
farsas e fogueiras de vaidade que, muitas vezes, se fazem presentes entre as
pessoas que praticam uma ciência, tretas essas que vão desde a procura pelo tal
do reconhecimento público até as disputas mesquinhas por verbas.
Podemos também destacar uma quarta
faceta: os inúmeros interesses econômicos que se fazem presentes numa pesquisa
científica. Os financiamentos, registros de patentes, criação de nichos de
mercado e assim por diante.
Temos ainda uma quinta dimensão,
que seria a política, onde a presença de preceitos ideológicos, junto com
preconceitos da mesma estirpe, que acabam por influenciar uma pesquisa e, sem
querer querendo, terminam por distorcer os seus resultados.
A sombria história da ciência está
repleta dessas tranqueiras.
Por fim, temos a ciência enquanto
imagem popularesca e midiática, que é aquilo que vemos retratada pela grande mídia
e replicada em nossas falas no dia a dia que, gostemos ou não, nada tem que ver
com as facetas anteriores. A ciência, nessa última acepção, não passa dum lugar
comum sem significação substancial alguma.
Vejam, essas seis dimensões apontadas
acima existem, estão presentes no dia a dia da prática de qualquer ciência. De qualquer
uma.
Aí, diante do exposto, penso que
caberia duas perguntas: quando evocamos a palavra ciência para justificar uma
predileção nossa por certas respostas nós levamos tudo isso em consideração ou não?
Quando, numa conversa banal, num boteco ou nas redes sociais, invocamos a “autoridade
científica” estamos, de fato, levando em consideração as múltiplas faces da
prática científica ou apenas usando uma imagem bonitinha, mas ordinária, para
parecermos mais sabidos que os demais?
Não vale mentir para si mesmo. Até podemos,
mas não vale.
Abre parêntese. Me permitam uma dica:
considere os juízos emitidos pelos representantes da OMS frente essas seis dimensões
indicadas, pondere sobre o gabarito científico de prefeitos, governadores, secretários
e ministros de Estado que falam em nome da ciência, à luz dessas seis perspectivas.
Faça isso e matute um pouco sobre essa encrenca. Fecha parêntese.
Pois é. Por isso sempre acho muito
engraçado quando vejo alguém falar que está agindo de acordo com “a ciência”. Dá
a impressão que ela, a ciência, é um ser onisciente, o oráculo dos oráculos,
coisa que ela não é e nem pode ser.
De mais a mais, vale lembrar que
ninguém consulta a ciência. Ninguém. Nós podemos consultar um e outro cientista,
através de seus trabalhos, que tem um e outro ponto de vista sobre um determinado
problema que nos aflige e, através desses pontos de vista divergentes, confrontados
com a realidade dos fatos, podemos tomar uma decisão que poderá ser exitosa ou não;
que poderá ser justa ou injusta, moral ou imoral e isso tudo, meu caro Watson,
não depende de ciência alguma. Depende da consciência de cada um de nós.
Por fim penso que depois desse papo
todo seria mais do que recomendado que tomemos uma boa xícara de café. Digo isso
não por ser algo cientificamente comprovado. Não. É apenas uma deliciosa
obviedade da vida que merece ser respeitada, como muitas outras que fazem parte
da nossa vida.
Escrevinhado por Dartagnan
da Silva Zanela, em 26 de maio de 2020, dia de São Felipe Néri.
Estou de acordo com teu escrito. Ele mostra que não podemos ser INGÊNUOS, inocentes, crédulos ante tudo o que se diz, se escreve, se faz e as justificativas que embasam tais ações. Não podemos duvidar de tudo... Mas urge que pesquisemos, busquemos os fundamentos de tudo o que parece ser (que seja do nosso interesse), mas nem sempre é o que parece.
ResponderExcluirParabéns!