CHIMARREANDO COM SÓCRATES E NARUTO


Um dos grandes obstáculos para corrigirmos nossa “deformação educacional adquirida” é, inquestionavelmente, a soberba, que disfarçamos tolamente sob a alcunha de consciência crítica [1].

Aliás, se formos sinceros para conosco mesmo, iremos reconhecer, com tristeza, que regularmente presumimos saber muito mais do que efetivamente conhecemos [2].

Sejamos ou não capazes de falar isso para nós mesmos diante do espelho, o aprendizado de qualquer coisa, com alguma profundidade, depende, necessariamente, dum ato de renúncia de nossa parte. De um ato de abdicação.

O aprendizado de qualquer coisa necessita dum gesto de sacrifício abnegado do postulante a aprendiz e, a primeira tranqueira que deveríamos renunciar é a vanglória de querer ter a tal da razão em toda e qualquer pendenga [3].

Se não estamos dispostos a sermos corrigidos e a nos corrigirmos, estamos soberbamente nos fechando em nós mesmos, nos escondendo atrás da vã ideia de “criticidade”, para nos sentirmos seguros em nossa debilidade.

Por isso, Hugo de São Vitor, ensinava aos seus alunos, e a todos nós, através de seus escritos, que ao tempo resistem, que a humildade é a virtude fundamental para o desenvolvimento do aprendizado de qualquer coisa, pois, sem essa excelsa virtude, não há educação de modo algum [4].

Na sua ausência, o que há, é o mais vil embrutecimento, sempre, é claro, travestido com os mais charmosos apelidos, pra disfarçar a crueza da bestialização que toma o lugar da educação.

(ii)

Todos nós, uma vez ou outra, já repetimos o dito socrático que afirma: “sei que nada sei”. Podemos ter feito isso por fazer, ou por zoeira, ou por cinismo, ou por qualquer outro motivo, porém, quem de nós realmente o disse para si mesmo estando plenamente cônscio das implicações que esse dito abarca? Pois é.

Numa era de banalização, em misto com um infernal ciclo de burocratização, era praticamente inevitável que a reflexão filosófica não fosse afetada, sendo reduzida a condição pífia duma reles disciplina curricular, ou a mero colóquio motivacional todo paramentado, que pouco tem haver com uma reflexão desse tipo, parecendo mais uma peça de entretenimento da indústria cultural do que com qualquer outra coisa que o valha.

E isso, também, como havíamos dito anteriormente, não se deve, necessariamente, aos meios de comunicação de massa em si, mas sim, e principalmente, ao nosso ego soberbamente massageado desde tenra idade, que nos leva sempre a ter uma postura dócil para com nossa mimada ignorância e uma rispidez sem par com tudo aquilo que ouse contrariá-la, porque amamos sentir que estamos certos, mesmo que nunca tenhamos nos esforçado para fazer o que é correto [5].

Aliás, não era isso que Sócrates, com sua sapiente simplicidade, sugeria aos seus interlocutores, que eles poderiam estar equivocados em suas furibundas certezas? Pois é.

Desde aqueles idos até os dias atuais, não se é possível falar do aprendizado de qualquer coisa se não estamos dispostos a sermos humildes e dizer, com convicção: eu não sei. Eu realmente não sei. Por isso, preciso aprender.

O reconhecimento ou não disso, goste-se ou não, irá direcionar o foco de nossa atenção. E atenção é à base da perseverança que, de mãos dadas com a humildade, são os fundamentos da inteligência [6].

(iii)

Tudo é uma questão de atenção. Entre outras coisas, quando Nosso Senhor Jesus Cristo disse que o tesouro de um homem está onde seu coração se encontra, era sobre isso que Ele estava falado.

E reparem numa coisa: isso não significa que devemos seguir pelos caminhos que são apontados pelo nosso coração com toda obstinação de nosso ser. Não. Significa, sim, que devemos reconhecer que nosso coração, nossa mente e todo o nosso ser, estão desordenados, bagunçados, e que precisam de alguma ordem [7].

Para tanto, precisamos, primeiramente, sermos minimamente humildes e reconhecer esse problema, que não é nem um pouco pequeno.

(vi)

O mundo moderno é profundamente dispersivo [8]. Com uma intensidade e frequência acachapantes somos aliciados a nos desfocarmos, a termos nossa atenção sendo furtada para as mais variadas atividades e, porque não, futilidades.

Perdemos tempo e, com ele, ganhamos um significativo decréscimo de nossa atenção, de nossa capacidade de concentração, porque acabamos permitindo que sejamos condicionados a ficarmos ansiosamente aguardando a próxima mensagem, o mais novo vídeo, a última treta e, tudo isso, por sua deixa, acaba nos levando a nos desviarmos para novos pontos de distração que, literalmente, sem que percebamos, vão impingindo severas limitações a nossa inteligência [9].

Sim, reconhecer a existência desse enfadonho fenômeno é fácil. E não requer coragem intelectual. Difícil mesmo é sermos capazes de reconhecer que, em grande medida, nós fomos e somos vítimas voluntárias disso tudo [10].

Agora, é preciso uma tremenda coragem intelectual para admitir que somos responsáveis, em grande medida, por esse mal que nos afeta e que, principalmente, a solução dessa encrenca que passou a habitar nosso coração depende exclusivamente de nós mesmos. E tal reconhecimento implica em algo que já havíamos apontado linhas atrás: um corajoso ato de renúncia [11].

É impreterível que abdiquemos de hábitos que são evidentemente danosos e, para tanto, é necessário que passemos a cultivar novos hábitos; hábitos virtuosos.

Bem, para tanto, sem querer querendo, para sobrepujar nossa soberba é necessária uma boa dose de humildade para passarmos a procurar estabelecer alguma ordenação em nosso conturbado coração, o que, por sua deixa, acaba abrindo caminho para a perseverança na realização de algo que, até então, era impensável para nós.

Enfim, se não somos capazes de identificar a desordem que há em nós e efetivamente nos esforçar para dissipá-la, o que nos leva a crer que seremos capazes de compreender a ordem e as desordens presentes na realidade externa à nossa alma?

(v)

Poderíamos recorrer a inúmeros exemplos para ilustrar o que estamos tentando chamar atenção, mas isso se tornaria, penso eu, contraproducente. Por isso, preferimos recorrer a um que temos um grande apreço. Trata-se da personagem Naruto.

Naruto, antes de se tornar um sujeito fodasticamente fodástico, era o legítimo zero à esquerda, em todos os sentidos. Porém, ele tinha algo que é muito mais importante que dons sobrenaturais ou talentos naturais. Ele era humildade o bastante para reconhecer quem ele era; tremendamente perseverante para realizar aquilo que estava no seu horizonte, ordenando o caos de seu coração que, consequentemente, acabou por maximizar a sua atenção e o poder da sua personalidade.

Ele não era grande, mas a docilidade dele para a disciplina permitiu que ele se tornasse grande, muito maior do que ele aparentemente deveria ser.

Bem, se voltarmos nossos olhos para a biografia dos grandes escritores, filósofos, santos, cientistas, estadistas, generais e tutti quanti, perceberemos que todos eles, cada um ao seu modo, procuravam estabelecer um centro em suas vidas, em seus corações, para que esse centro ordenasse tudo o mais que fosse feito por eles em seu peregrinar por esse vale de lágrimas.

Por isso eles foram capazes de se sobrepor as forças limitantes de suas circunstâncias [12], ao contrário de muitos, que acabaram e acabam sendo devorados por elas.

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela, 27 de janeiro de 2020, dia de Santo Henrique Ossó e Cervelló.

__________
[1] LAVELLE, Louis. O ERRO DE NARCISO. São Paulo: É realizações, 2012.

[2] CRISTALDO, Janer. Como ler jornais. eBooksBrasil, 2006.

[3] PAYOT, Jules. A educação da vontade. Taguatinga: Editora Kiron, 2018.

[4] HUGO DE SÃO VITOR. Opúsculos sobre o modo de aprender. Disponível na internet: http://www.cristianismo.org.br

[5] SANTO AGOSTINHO. O Livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 2004.

[6] LAVELLE, Louis. A consciência de si. São Paulo: É Realizações, 2014.

[7] SCHUON, FRITHJOF. Ter um centro. Arquivo digital.

[8] SMITH, Wolfgang. O demônio da distração. Arquivo digital.

[9] HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.

[10] CARR, Nicolas. A geração superficial – o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011.

[11] SANTOS, Mário Ferreira dos. Curso de integração pessoal. São Paulo: Logos, 1956.


[12] GASSET, José Ortega y. Meditações do Quixote. São Paulo: Livro Ibero-Americano Ltda, 1967.


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